O café na Arábia era qahwah, na língua deles, vinho. Conhecido como vinho da Arábia, desde sua descoberta tinha um caráter inebriante, conquistador, requintado. Capaz de dar energia e estimular os sentidos, a pronúncia da palavra assemelha-se ao que passamos a chamar café: qahveh.
A relação entre café e vinho, sempre muito citada pelos amantes do mundo das bebidas, pode ter se iniciado há milhares de anos, quem sabe numa simples ligação entre as palavras. Porém, os dois produtos traçaram caminhos distintos no conhecimento do mundo sobre suas complexidades e parecem agora ter se encontrado mais adiante nessa estrada. Hoje, vinho e café estão em pé de igualdade quando falamos de sabor, aroma e esmero na produção.
O vinho criou uma cultura de apreciação importante e cativou amantes há décadas. O café, por sua vez, vem atualmente formando esse hábito e acompanha a rota percorrida pelo primeiro. Por fazerem parte de mercados de produtos diferenciados, ambos têm similaridades e podem ser comparados quando falamos em status de consumo.
O universo do vinho gourmet permite com freqüência comparações entre safras de diferentes regiões produtoras, entre uvas de espécies distintas e tecnologias de vinificação (colheita, desengaçamento [soltar os bagos de uva dos cachos], prensagem, fermentação, filtragem e armazenamento). Cada vez mais os apreciadores da bebida conhecem o que estão comprando e realizam harmonizações com culinárias diversas. De vinhos brancos e tintos leves e encorpados a rosés, espumantes e de sobremesa, cada um possui seu momento apropriado para degustação.
No café não é diferente. Apesar de este conhecimento ser algo novo, que está completando no máximo quinze anos, os apreciadores encontram potencial na bebida para harmonizar seus tipos em diferentes momentos do dia. O preparo que será dado ao café e a última etapa pela qual passa o produto influenciam fortemente na qualidade final na xícara, além, é claro, do beneficiamento (colheita, limpeza e separação, despolpamento, remoção da mucilagem e secagem e armazenamento) e da torra do grão.
PROCESSO PRODUTIVO
A maioria das uvas cultivadas no Velho Mundo (França, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha etc.) é reconhecidamente de qualidade. As vinícolas têm receitas milenares de cultivo que, aliadas aos diferentes microclimas das regiões onde são cultivadas e ao cuidado de cada produtor com o solo e a vinha, conferem às bebidas notas altas. A junção desses fatores é denominada terroir e influencia no resultado final do vinho produzido. Assim como a uva cultivada (branca ou tinta) e as variedades chardonnay, cabernet sauvignon, entre outras, que passam por diferentes processos de vinificação, o café possui duas espécies comercializadas, robusta e arábica, e variedades distintas, como catuaí, bourbon, icatu, conillon, entre outras, que também passam por beneficiamento diverso.
No entanto, é possível estabelecer uma relação direta entre os processos pelos quais passam os dois produtos. O fruto do café, conhecido como cereja quando maduro, deve ser colhido na sua maturação plena, assim como a uva na videira. Para o engenheiro e juiz da Specialty Coffee Association of America (SCAA), Ensei Uejo Neto, "as variedades de café consideradas precoces, ou seja, que naturalmente possuem um ciclo entre a florada até a plena maturação menor do que as demais, têm como determinante o local de seu plantio para a obtenção de toda a gama dos aromas e sabores". O mesmo acontece com as uvas cultivadas em clima frio, que permite com morosidade a expressão de todo o potencial do fruto e torna a bebida mais aromática e saborosa.
|
Uma análise minuciosa deu resultado ao trabalho realizado pela equipe da cafeteria paranaense Lucca Cafés Especiais, que, sob a orientação do sommelier Guilherme Corrêa, da importadora Decanter, e do enólogo Marcelo Retamal, da vinícola chinela De Martino, traçou uma equivalência entre os produtos. Segundo o estudo, a uva tinta que inicia a vinificação com casca e semente e resulta em uma bebida com mais corpo, tanino, doçura e coloração pode ser comparada ao café natural que é seco ao sol, igualmente com a casca envolvendo o grão, o que gera um café mais doce e encorpado.
Seguindo a mesma metodologia, a uva branca tem as cascas e sementes retiradas após a colheita antes da fermentação, assemelhando- se ao café cereja descascado, que também passa por um beneficiamento para a retirada da casca que envolve o grão. "Ambos os processos resultam em uma bebida mais limpa, leve, um pouco menos encorpada, mas que permite a percepção de notas de sabor de origem vegetal, como flor, fruta, ervas, e a boa acidez", explica Geórgia Franco de Souza, proprietária da Lucca, que ouviu pela primeira vez esta correlação entre café e vinho nos Estados Unidos, em 2000. A especialista ainda vai além ao relacionar o café lavado (desmucilado), que passa pelo processo de retirada da mucilagem, com os espumantes, que têm entre suas características a presença marcante da acidez. Ou ainda os vinhos de sobremesa feitos a partir de uvas supermaduras que concentram mais açúcar, assim como os cafés naturais conhecidos como late harvest, que usam do mesmo princípio, a colheita tardia, que resulta em grãos mais adocicados.
O NARIZ DUPLO PARA AVALIAR
Na linha de relações entre as duas bebidas, a SCAA encomendou ao enólogo francês Jean Lenoir o estudo e o desenvolvimento de um grupo de aromas denominado Le Nez du Cafe (O Nariz do Café), que consiste em uma adaptação do trabalho por ele realizado em 1981 para as nuances do vinho. A caixa com pequenos vidros semelhantes a frascos de perfumes contém 36 aromas possíveis de ser identificados na degustação de cafés, como limão, mel, chocolate ou cedro, por exemplo. O objetivo do kit, que acompanha um livro com a explicação de cada característica, é instigar o apreciador a decifrar na sua bebida os aromas e sabores que remetem aos dos vidrinhos e, portanto, presentes no café.
Para o vinho, Jean elaborou o Le Nez du Vin, que apresenta 54 aromas com notas primárias de fruta, floral, animal, vegetal e picante e, por fim, agradável, que engloba nuances secundárias como café, chocolate e caramelo, por exemplo. Depois de muito treino consegue-se resgatar na memória olfativa cheiros e sabores que lembram aquele do café ou vinho apreciados. Do desenvolvimento deste projeto surgiu a Roda de Aromas e Sabores da SCAA, que traz de forma completa ao degustador os mais de 30 aromas e gostos correlacionados. O vinho possui uma roda parecida que também destaca as nuances da bebida e ajuda o apreciador a estabelecer referências com o sabor que sentiu no momento da prova.
|
COMPLEXIDADE DO PREPARO
Outras etapas importantes do vinho e do café são a fermentação e a torra, respectivamente. Fases estas que determinam a qualidade e o tipo de bebida ou grão que chega ao consumidor. O processo de fermentação do vinho é complexo, com diversas nuances entre os tipos de bebidas a serem preparadas. No geral, é um fenômeno natural no qual o açúcar contido nas uvas se transforma em álcool sob a ação de leveduras. Simultaneamente ocorrem outras reações químicas que, ao final do processo, resultam no vinho que conhecemos. O tempo de fermentação, a forma como toda a vinificação é realizada e o armazenamento para envelhecer ou seguir para o engarrafamento determinam a qualidade, o aroma e o sabor do produto.
O mesmo acontece com o café no processo de torra, que ocorre respeitando as características do grão beneficiado, o tipo de preparo que ele irá receber e as possíveis diferenças de paladar e gosto do consumidor do produto. O mesmo grão torrado de maneiras diversas, nível do claro ao escuro, resulta em uma bebida completamente distinta que pode acentuar as qualidades ou mascarar defeitos dos grãos. Do lado positivo podem-se notar nuances cítricas, florais e doces ou negativas, como amargor e adstringência, por conta de um beneficiamento incorreto ao longo do processo ou de uma torra muita escura.
Após todo o processo de fermentação e engarrafamento o vinho segue para a mesa do consumidor e o café, preferencialmente para a mão de um barista. Na comparação entre ambos esta é a etapa mais diversa e comentada por especialistas.
BARISTA E SOMMELIER: A PONTA
O vinho está pronto na garrafa e precisa de um sommelier conhecedor da arte para harmonizá-lo corretamente. Ele também indicará a melhor temperatura para cada tipo de bebida. De acordo com Tiago Locatelli, sommelier do restaurante paulista Varanda Grill, um espumante deve estar na temperatura de 6oC a 8oC, os brancos leves a 8oC e os encorpados e rosés entre 12oC e 13oC. Tintos leves devem estar ao redor de 17oC e encorpados entre 18oC e 19oC. Para esfriar o vinho pode-se utilizar um balde de gelo; uma garrafa no gelo durante oito minutos sofre uma redução de 5oC na temperatura, que corresponde a 60 minutos de permanência na geladeira.
Além destes detalhes há também o cuidado com a taça escolhida, que deve ser preferencialmente lisa, incolor, com pé alto e diâmetro de boca menor que o do corpo, o que facilita a análise olfativa. A maior diferença é no tamanho das taças: a de vinho branco é menor que a dos tintos. Isto porque o branco deve ser apreciado gelado e, em contato com o copo, passa a esquentar. A menor quantidade garante que a degustação seja na temperatura ideal, sem pressa. Já o tinto pode ser servido em uma taça maior, que contribui para a respiração da bebida quando entra em contato com o ar, mesmo princípio dos decanters que ajudam o vinho a se oxigenar e abrir os aromas e sabores. As jarras de decantação possuem amplas bases que permitem que o vinho respire e se expresse melhor.
O café não chega pronto ao consumidor, esta a grande diferença entre ele e o vinho. Para prepará-lo corretamente é necessária a participação do barista, profissional que há poucos anos começou a ter sua importância reconhecida no mercado de cafés de qualidade. O barista carrega a responsabilidade de entregar ao apreciador um café bem tirado, que destaque todas as nuances que o grão apresentou durante o processo de produção.
A última etapa da cadeia cafeeira está nas mãos deste profissional, que irá realizar a moagem adequada do grão para o tipo de preparo. No filtro ela é fina; na french press e na cafeteira italiana deve ser grossa; e para o espresso, média. A quantidade de pó para a proporção e temperatura ideais da água, a regulagem do acessório ou maquinário utilizado e o tempo de contato da água com o pó são pontos importantes para os quais o barista deve atentar, além da escolha da xícara de formato correto e sua temperatura.
Hoje, já existem grandes empresas que desenvolvem o café em cápsula para que, no preparo do espresso, haja menor intervenção humana na qualidade da bebida. Uma delas é a suíça Nespresso que hoje possui diferentes blends, pela marca definidos com o nome de Grand Cru. Seguindo a linha de interação entre vinho e café, a empresa lançou um programa, o Codex para o Café, voltado para os sommeliers. A intenção é que eles sejam os embaixadores do café dentro dos restaurantes e responsáveis pela indicação ao cliente de qual café harmoniza melhor com determinada refeição e sobremesa, por exemplo.
Para o suíço Edouard Thomas, sensory specialist da Nespresso, o objetivo é aumentar o interesse do mundo pelo café de alta qualidade: "Como o vinho, o café oferece uma enorme diversidade no resultado final e ele é cultivado para ser um prazer único ao paladar. Na gastronomia, o sommelier sabe qual vinho recomendar ao cliente de acordo com a escolha dele. Da mesma forma o café correto pode ser indicado para aumentar a experiência e o prazer do cliente de acordo com o momento e com o que ele está consumindo".
|
|
De cima para baixo, rodas de aroma e sabor usadas internacionalmente para a degustação de vinho e café. |
DIÁLOGO QUE REFORÇA ATRIBUTOS
Seguindo esta linha de harmonização, foi oferecida pela primeira vez ao público, no 3º Espaço Café Brasil - feira de negócios dedicada exclusivamente ao mercado de cafés de qualidade - uma harmonização de café e vinho. Idealizada pelo especialista em café Ensei Uejo Neto e o sommelier Manoel Beato, a experiência tem como principal conceito mostrar aos visitantes que há um diálogo entre os dois produtos. "O grande segredo da harmonização é o alinhamento das duas partes envolvidas. Para isso, desenvolvemos o que chamamos de concentração equivalente, ou seja, o café deve ser preparado no método de coador, como no Hemisfério Norte, para assemelhar-se à concentração do vinho", avalia Ensei.
Na harmonização são usados apenas cafés e vinhos de qualidade que apresentam notas delicadas mais distintas. Ambos os produtos são apreciados em taças, pois os especialistas apontam que a geometria do copo ajuda na percepção das nuances mais voláteis, que são mais bem captadas em ambientes mais concentrados. Na avaliação de Ensei, a harmonização "não é um diálogo unidirecional, pois o café reforça atributos do vinho ou o vinho acaba servindo de escada para destacar sabores do café". Uma novidade que pode indicar interessantes caminhos.
Experiências como estas de procurar similaridades, harmonizar e criar uma relação entre esses dois produtos só contribuem para que o consumidor faça testes em casa ou em cafeterias ao provar diferentes cafés de qualidade. Assim como as safras únicas de vinho produzidas por uma região específica, com uvas selecionadas e de determinada variedade, o café também pode ser de terroir - cultivado em uma única fazenda, em um microclima específico etc. - ou de safras diversas e exclusivas que se transformam em blends preciosos, combinações de variedades, tipos de beneficiamento, regiões e outras peculiaridades. Todos estes detalhes transformam aquele café que bebemos em uma experiência única. Por isso, uma dica: valorize o próximo café que você degustar, procure saber mais sobre o processo produtivo e ele, certamente, se tornará mais precioso do que antes. Em uma nova degustação é provável que o sabor daquele bom momento venha resgatado na memória, e esse é um ótimo sinal - sinal de que o café de qualidade lhe conquistou.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário