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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

PÊRA-MANCA ORGULHO LUSO ENGARRAFADO



por Marcelo Copello
Cabral, Caminha, Camões, d. João VI, Fernando Pessoa, Eça de Queirós, José Saramago, Amália Rodrigues... Portugal possui uma vasta galeria de personalidades de primeira grandeza, ícones que simbolizam o país ibérico internacionalmente. Nenhum desses astros superam a exponencialidade da gastronomia lusitana. A simples menção da palavra "bacalhau", por exemplo, leva o pensamento a cruzar o Atlântico em um segundo, em direção a Portugal. Alguns vinhos também trazem em si esse teor evocativo. Nomes como Barca Velha e Pera-Manca são orgulho nacional, até mesmo para cidadãos lusos que nunca os provaram. Esses rótulos alcançaram status não apenas por sua excepcional qualidade, mas por sua importância histórica.
"Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho", conta Pero Vaz de Caminha na carta enviada ao rei. A bebida que teria sido oferecida aos nativos do Brasil, trazida em caravelas, era um tinto feito próximo a Évora. Batizado de Pera-Manca e citado em crônicas quinhentistas, foi usado para selar o encontro entre Pedro Álvares Cabral e os aborígines.
Também há indícios de que o Pera-Manca foi citado na obra-prima de Luís de Camões, "Os Lusíadas". O nome raro foi inspirado no terreno onde estavam os vinhedos, um barranco com pedras soltas. Dizia-se na época que as pedras balançavam, mancavam. Das "pedras mancas" surgiu o Pera-Manca.
Um vinho com este nome existiu até o início do século XX. Produzido pela Casa Agrícola José Soares, o Pera-Manca chegou a colecionar importantes prêmios internacionais, como medalhas de ouro em Bordeaux em 1897 e 1898. Após a morte do proprietário da empresa, em 1920, a vinícola fechou as portas e o Pera-Manca desapareceu.
Criada em 1963, a Fundação Eugênio de Almeida (FEA) tem como objetivo apoiar o desenvolvimento da região de Évora por meio de ações sociais e culturais. Nos anos 80, a FEA ganhou um setor vitivinícola, sob o comando de dois grandes nomes da enologia portuguesa: Francisco Colasso do Rosário e Francisco Pimenta.
Herdeiro da Casa Agrícola José Soares, José António de Oliveira Soares, doou a marca "Pera-Manca" à FEA em 1988. A partir daí, o produto top da FEA, até então chamado de Cartuxa Garrafeira, ganhou o nome do vinho cabralino. A primeira safra do novo Pera-Manca, viria a ser a de 1990, encerrando um hiato de 70 anos na história do vinho.
O Pera-Manca só é produzido em anos excepcionais, nos demais anos, as garrafas são rotuladas como "Cartuxa Reserva". Até hoje a FEA só elegeu as vindimas de 1990, 1991, 1994, 1995, 1997 e 1998. Já se sabe que não haverá Pera-Manca em 1999 e 2000. Para o ano de 2001 a decisão será tomada após as degustações de amostras em março de 2004.
Se a safra for aprovada, chegará ao mercado apenas em 2006. O volume de produção deste supervinho varia muito, ficando entre 15 e 30 mil garrafas ao ano. Não há uma fórmula fixa. Mas a base é sempre as castas Aragonez e Trincadeira. Outro diferencial é o uso de madeira usada. Adotam-se tonéis de 3 mil litros com mais de 50 anos, diferentemente da maioria das vinículas, que utilizam barricas novas de carvalho, tão em moda hoje.
O Pera-Manca 1998, atualmente no mercado, (Adega Alentejana, tel.: (11) 5531-1595, R$ 375), tem 14,5% de álcool e é elaborado a partir das castas Trincadeira (70%) e Aragonez (30%). Permanece 16 meses em madeira. De cor rubi escura, tem nariz complexo, aromas de tostados, fruta passa, menta e muitas especiarias. No palato demonstra, ao mesmo tempo, força e textura macia, uma mão de ferro em luva de veludo. Deixa um agradável frescor no fim de boca, com taninos muito finos.
Quando se fala em vinhos míticos portugueses, a primazia e a precedência são do Barca Velha. Este foi o primeiro e, por décadas o único, vinho de mesa português a alcançar reputação internacional. Criado a partir da safra de 1952, por Fernando Nicolau de Almeida, enólogo da Casa Ferreira desde 1927, o "Barca" foi o precursor dos grandes vinhos de mesa feitos hoje no Douro.
O principal produto da região era, e ainda é, o Vinho do Porto. Até a criação do Barca Velha, os vinhos de mesa da região eram considerados inferiores, produzidos com os excedentes de uvas não utilizadas no Porto. Fernando Nicolau de Almeida acreditava que era possível elaborar tintos de mesa com a mesma filosofia de produção dos Portos Vintage.
O Porto é um vinho fortificado, ou seja, sua fermentação é interrompida pela adição de aguardente vínica, resultando em grande concentração de álcool e açúcares. Para conseguir este equilíbrio em vinhos de mesa, Fernando Nicolau de Almeida teve que usar técnica e criatividade. Ao longo de anos fez várias experiências, nas quais recebeu o incentivo de outra lenda da enologia mundial, Émile Peynaud, do Instituto de Enologia da Universidade de Bordeaux.
Almeida utilizou uvas de diferentes terrenos, com diferentes altitudes, buscando melhor equilíbrio entre maturação e acidez natural das uvas. Inspirado nos châteaux de Bordeaux, introduziu a remontagem com bombas e o controle de temperatura na fermentação. Como na época não existia energia elétrica na região, passou a encomendar barras de gelo, que percorriam grande distância até chegar em sua adega.
Outro conceito utilizado, herdado dos Portos Vintage, foi o de só produzir o vinho em grandes safras. O primeiro Barca Velha, o de 1952, chegou ao mercado apenas em 1960. Após este foram lançadas as safras de: 1964, 1965, 1966, 1978, 1981, 1982, 1983, 1985, 1991 e 1995. Ou seja, apenas 11 safras num intervalo de 43 anos. Em alguns períodos o intervalo entre uma safra e outra chegou a ser de 12 anos (1952-1964 e 1966-1978), o que demonstra o extremo rigor de sua elaboração. Nos anos bons, mas quando o vinho não atinge a qualidade necessária para ser o Barca, recebe o rótulo Reserva Ferreirinha. Em anos medíocres não há nem Barca Velha nem Reserva Ferreirinha.
A Casa Ferreirinha foi vendida, em 1983, à Sogrape, uma das maiores empresas portuguesas do setor vinícola. Já falecido, Fernando Nicolau de Almeida emprestou sua última assinatura ao Barca Velha 1982. A safra de 1983 viria a ser produzida por seu discípulo, José Maria Soares Franco, até hoje o responsável técnico da casa.
O cardeal dos vinhos portugueses é longevo. Normalmente está pronto aos 10 anos de idade, mas chega bem aos 20 anos, podendo viver bem mais. Sua produção é de aproximadamente 50 mil garrafas/ano.
O Barca Velha 1995, safra atualmente comercializada no Brasil pela importadora Aurora (tel.: (11) 3845-2288, R$ 966), levou 7 anos para chegar ao mercado. É composto pelas castas Tinta Roriz (predominante), Touriga Nacional, Touriga Francesa e Tinta Barroca, submetidas a uma longa maceração (cerca de 21 dias). Ficou cerca de um ano a um ano e meio em barris novos de carvalho francês. É um vinho elegante e estruturado. Nos aromas tem o que se chama de buquê, apresentando um pouco de tudo: aromas vegetais, frutados, minerais, florais e animais, com ameixas, cassis, couro, madeiras, violeta e ervas. Paladar encorpado e 12,6% de álcool completam a bebida. Pronto, já mostra muitas qualidade, embora seja feito para envelhecer muitos anos.
Como acontece com a maioria dos vinhos portugueses, o Barca Velha também tem um nome curioso. Nasceu de um vinhedo na Quinta do Vale do Meão, uma das propriedades que fornecia uvas para a mescla do vinho. O vinhedo, a margem do Douro, era onde aportava uma velha barca, usada para cruzar o rio. O interessante é que as uvas cultivadas ali eram brancas, da casta Malvasia Rei, que, naturalmente, jamais foram utilizadas na elaboração deste mito lusitano engarrafado.

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