FONTE TERRA,Mauricio Tagliari
De São Paulo (SP)
As noites de inverno de meus anos de universidade muitas vezes se aqueciam com um delicioso caldo verde da saudosa Adega Portuguesa, que ficava na rua General Jardim, quase em frente ao mais caro e mais boêmio e também desaparecido Parreirinha, em São Paulo. Com os bolsos sempre vazios, o banquete se completava com alguns deliciosos bolinhos de bacalhau e uma jarra de vinho da casa.
Lá pelos inícios dos anos 80, a oferta de bons vinhos nos restaurantes e bares constituía raridade. Em tempos de fins da ditadura, o mercado se encontrava extremamente fechado. Na Adega Portuguesa, serviam um branco do barril trazido do sul. Não faço idéia de quais as uvas usadas, mas tenho claras na memória as características do vinho, que, se não eram maravilhosas, estavam longe de ser péssimas. Pareciam, digamos, peculiares.
De qualidade constante, cor puxando para dourado, aroma frutado e sabor muito seco e já ligeiramente oxidado, o vinho surgia sempre bem fresco à mesa. Na temperatura certa. Era meu "vinho da casa" preferido dentre os que bebia pela noite paulistana. Muito melhor do que os tintos quase intragáveis da conocorrência. Que meus colegas enófilos me perdoem, mas sempre que bebo um bom Jerez ou mesmo um ícone como o espanhol Viña Tondonia aquele vinho me vem à mente.
Mas veio a abertura democrática e, em seguida, uma maior liberalidade comercial. Novos e melhores sabores aportavam de terras distantes para nos educar. No meu aprendizado pessoal, foi importante conhecer uma pequena lojinha no bairro de Pinheiros onde um senhor italiano simpático e muito calmo tinha um bom estoque de rótulos então desconhecidos por mim. Era Luciano Percussi, um ex-comandante de navio e industrial, radicado no Brasil e apaixonado por vinhos.
Poucos anos mais tarde, já como restaurante, a Vinheria Percussi seria outro local onde beberia "vinho da casa". Se não me falha a memória, existiam um tinto e um branco chamados Maremma, em homenagem à bela região toscana, mas produzidos aqui mesmo no Rio Grande do Sul. Um outro rótulo um pouco mais caro era o Vila Cristina.
Avançando um pouco mais ainda no tempo, houve o quase desaparecimento do "vinho da casa" dos restaurantes em São Paulo. Com a invasão de chilenos e argentinos, a exigência do consumidor mudou. A nova sensibilidade pedia vinhos mais encorpados e frutados. Os brasileiros, na época, precisaram evoluir e se adaptar. Mas, ao retornar para a mesa, vieram na garrafa do produtor. Seria o fim do "vinho da casa"?
Na Europa, é comum até hoje que o dono de um pequeno restaurante compre diretamente do produtor por um preço mais em conta, um bom vinho de sua região. O "vinho da casa" no velho continente pode não ser um tesouro, mas é bem mais respeitado do que por estas bandas, onde ganhou a pecha de vinho ordinário.
Curiosamente, nos últimos anos, oferecer um vinho da casa tem-se tornado uma aposta de algumas ótimas casas. A própria Vinheria Percussi, depois de abandonar seus primeiros rótulos, relançou em 2008 seu Percussi Reserva Especial Castas Portuguesas, na verdade o Quinta do Seival, da Miolo, um dos bons vinhos brasileiros, com um rótulo exclusivo criado por Cláudio Tozzi para o restaurante.
Quinta do Seival, da Miolo (Foto: www.miolo.com.br/ Divulgação)
A tradicional pizzaria Speranza, que até pouco tempo ainda servia seu vinho em jarras, fechou um acordo com a Salton e oferece quatro rótulos diferentes. As vendas batem as três mil garrafas/mês.
Mas outros têm buscado o "vinho da casa" mais longe. O Piselli traz do Piemonte o seuRubino di Cantavenna. O clássico La Casserole também trouxe seu vinho de Bordeaux para servir com rótulo próprio. E a união da Adega Santiago com o pessoal da Cia Tradicional de Comércio (leia-se Astor, Brás, Original, Pirajá, etc.) traz de Montepulciano o seu BottaGallo. Um tinto leve da Toscana.
De toda esta onda, talvez a aposta mais interessante venha a ser a do Rubayat. Belarmino Iglesias, o proprietário, realizando um antigo sonho, comprou uma propriedade do século XVI na Galícia, em Lugo, sua terra natal, e convocou um enólogo experiente, Gregory Pérez (com passagens por Cos d'Estornel, Grand Puy Lacoste e Bodegas Luna Berberide, entre outras), para produzir um corte de Menía Gallega (70%), Merlot (15%) e Syrah (15%).
O resultado é o Pazo Rivas 2008, um tinto interessante e moderno, de 13% de álcool, com bom corpo, aroma frutado, boa acidez e que vai muito bem com comida. São "apenas" 13 mil garrafas vendidas nos restaurantes Figueira e Rubayat, por R$ 85 cada. O que demonstra que o "vinho da casa" já não é mais para universitários boêmios de bolsos furados.
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