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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Tendências vinicas por escações portugueses

José Brito e Octávio Teixeira são escanções do restaurante Gambrinus há, respectivamente, 45 e 30 anos

Não há porteiro no nº 23 da Rua das Portas de Santo Antão, mas é aqui que se encontra o restaurante/ cervejaria de luxo de Lisboa, ex libris da vida social e política da capital. Abriu em 1936, ocupando o lugar de uma antiga tasca, mas as grandes obras de remodelação foram feitas em 1964, com assinatura do arquiteto Maurício de Vasconcelos - que foi cliente da casa até morrer. Ainda hoje se respira o ar desse tempo na patine dos revestimentos e nos pormenores da decoração que nos transporta para o modernismo sóbrio da época. Desde então, o Gambrinus não mudou. Discreto. Sem concessões aos modismos nem alterações de carta para pratos mais nouvelle cuisine. Uma instituição.
A porta abre-se. Entramos pelo bar. À direita, o balcão de madeira maciça clara, com as banquetas forradas de couro, atravessa a sala em todo o comprimento. A "barra" do Gambrinus é um acontecimento, com 12 lugares sentados talvez ainda mais concorridos do que as 28 mesas da sala. Aqui, os preceitos do serviço são os mesmos: individual e guardanapo de linho branco, talher da Christofle, copo de pé alto, café preparado no balão. Há clientes que são só da "barra" e marcam lugar sempre no mesmo assento. São os históricos da casa, alguns com 50 anos de frequência e grandes discussões entre si, reivindicando o estatuto de maior longevidade. Uma das particularidades do balcão é a pequena janela (indiscreta) que abre para a cozinha. Faz parte do jogo os empregados aproximarem-se dessa janela, anunciando com pompa e circunstância: "O senhor fulano de tal quer o bife mal passado; Os lagostins do doutor X já estão prontos?" Quem estiver atento fica a saber quem está nas salas. E estas indicações podem ser preciosas para quem quiser ir lá dentro cumprimentar algum ilustre ou terminar rapidamente o aperitivo para evitar certos encontros.
A "barra" é o território do Sr. Brito, o escanção do bar. José Brito é o empregado mais antigo. Entrou com 16 anos, em 1965, e em quase meia década de casa só não trabalhou em 69, por causa do serviço militar. Safou-se de ir para África "graças a conhecimentos do Gambrinus": um coronel que trabalhava no Palácio Foz "orientou-o". Tropa feita, regressou com intenção de se especializar. Muitas vezes era requisitado para sugerir um vinho, falar das características de outro: "E qual me aconselha para este prato?" Para não fazer má figura foi aprender o métier de chefe de bar e de mesa mais um curso de escanção e umas tantas reciclagens. Oito anos a estudar, cursos de línguas e tudo.
"Antigamente chamava-se chefe dos vinhos ao escanção. Nós somos dinossauros!", agora é Octávio Ferreira quem fala. Já leva 31 anos de Gambrinus o Sommelier das salas. Chega à conversa com uma lista de méritos: "Master of Porto"; 4º Melhor Escanção do Mundo em 1986 e 1989; Chevalier Maître Conseil em Gastronomia; Presidente da Associação dos Escanções de Portugal... Brioso, o senhor Octávio desde muito jovem quis evoluir. Começou num restaurante em Viana do Castelo, em 1973 fez a escola de Hotelaria do Porto. No final da década, conheceu Brito num concurso de escanções. Foi ele quem o apresentou no restaurante.
E qual é a cartilha dos chefes dos vinhos? "Saber o que se passa na cozinha, como é feito cada prato e que vinhos melhor os acompanham. Há que ter conhecimento da panorâmica geral de cada vinho e das suas características", esclarecem. "O segredo é saber como tudo deve ser ligado", enfatiza o senhor da "barra". "Mas, atenção, não nos podemos impor, só avançamos se formos consultados", contrapõe o chefe Octávio. Nem para corrigir combinações despropositadas? "Não! Isso nunca se faz! O cliente manda." "Uma aguardente com trouxas de ovos? Muito bem", diz Brito mimetizando o diálogo.
Saber escolher, medir a temperatura, rodar o copo, espreitar a cor, cheirar... Perceber de vinhos é um ritual elaborado. Num lugar como este, o cliente que quer impressionar puxa pelos galões na escolha do vinho. "Se um cliente gosta de mostrar que sabe, e muitas vezes sabe, damos-lhe estrada para brilhar. Essa chama tem de ser alimentada. faz parte." E o estatuto de um cliente pode-se medir pelo vinho que escolhe? "Sem dúvida", concordam. "Imagine que está num almoço de negócios e pede um determinado produto. Tem de impressionar, mostrar que conhece."
A garrafeira é extensa. Mais coisa menos coisa, 3500 garrafas armazenadas em duas salas. São o espólio da casa. Quem compra os vinhos é a administração, mas Brito e Octávio dão as sugestões: o que ter, quantas garrafas se devem comprar, o que fica na carta e o que tem de ser eliminado.

Os vinhos são moda



Cada época tem o seu paladar. No final dos anos 60 começaram os alentejanos. Octávio conta a história: "Até essa altura, os vinhos tinham características muito diferentes, ainda não havia formação de enólogos, e eram feitos empiricamente e por isso mais rústicos. Precisavam de tempo para amaciar até se tornarem bebíveis. Até final dos anos 70, os mais apreciados eram os vinhos velhos do Douro, mais pesadões. Grandes casas como o Gambrinus precisavam de uma garrafeira muito grande para armazenar garrafas que só se abriam anos mais tarde." Há vinhos que se bebem sem pressa. Um Barca Velha, por exemplo, precisa de seis a sete anos para maturar. Brito recorda-se de em 75 abrir garrafas de vinho branco de 47. "Com as novas tecnologias apareceram os vinhos mais leves, mais frutados, mas rápidos de consumo, também. Hoje já quase ninguém gosta de vinhos velhos."
Haverá muita gente que só escolhe pelo preço? "Sempre houve os consumidores de vinhos e os consumidores de rótulos. A questão é que antigamente não havia o poder de compra atual", confidencia o escanção mais antigo. Hoje, novos clientes chegam às mesas do restaurante. Mas os empregados não gostam de referir nomes, a discrição é a alma do negócio. "Somos como padres", ironiza Brito. Subitamente, baixa o tom de voz, cometendo uma pequeníssima indiscrição: "Agora é o tempo dos africanos. São os novos clientes da casa e do país." O Gambrinus sempre foi um bom barómetro das temperaturas da vida social, económica e política da nação. "Se o restaurante estiver vazio é porque algo está mal, muito mal no país", afirma Octávio.
José Brito recorda-se claramente do dia mais vazio de todos: 25 de abril de 1974. "Na véspera sai do restaurante perto das cinco da madrugada, fui para casa, passei pela Emissora Nacional e não dei por nada. No dia seguinte, estava tudo fechado. Ficámos até à hora do almoço e depois o patrão mandou-nos embora. Lembro-me de nesse dia ter comido fanecas fritas." Octávio ri-se do detalhe, o colega retoma a história: "No Rossio, vi uma força de blindados em frente à estação e cheguei ao Largo do Carmo ao mesmo tempo dos chaimites. O ano de 75 foi muito complicado. Muitos clientes foram embora do país, muita gente deixou de vir, por medo ou vergonha."

Mudam-se os tempos, mantêm-se as vontades



"Os políticos sempre fizeram questão de marcar lugar na casa. Que eu saiba, só Salazar e Álvaro Cunhal nunca cá jantaram. Ainda estou a ver Américo Tomaz quando chegou do exílio do Brasil a entrar naquela porta", diz Octávio...
O almirante a descer os degraus, Vasco Lourenço sentado com os camaradas. Mário Soares marcando presença, Sá Carneiro e Snu Abecassis; Pulido Valente, na mesa do canto fumando cigarros e o general Spínola logo à entrada, de pé, a beber aguardente de pera. Fernando Lopes, todos os dias à hora de almoço; e João César Monteiro numa briga com Emphis dos touros. E tantos outros polemistas aqui na casa. A malta do cinema, a malta dos jornais; os artistas nas noites de espetáculo, ali ao lado no Coliseu e os atores do D. Maria, os habituées do São Carlos, de casaca e vestido comprido a cear champanhe e lagostins à luz dos candelabros. Estrangeiros ilustres de outras cidades e americanos anónimos que gostam de whisky com lagosta. Os apreciadores do croquete e da lambreta; os amantes da empada de perdiz e do prego de rosbife... Qual é o segredo do nº 23 das Portas de Santo Antão? Octávio Ferreira dá uma resposta simples: "Esta é a casa em que qualquer um se sente em casa."

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