Mauricio Tagliari
De São Paulo
Ilustração: Daniel Tagliari Dizia Vinícius de Morais que "a vida vem em ondas, como o mar". Sim, acreditem, Lulu Santos (ou Nelson Motta) apenas citava o poetinha. E esta sabedoria zen se manifesta das mais diferentes formas. Pense, querido leitor, que nem sempre se tem assunto interessante para uma coluna de bebidas semanal. Há períodos de seca, real e metafórica. Nada de lançamentos, nada de efemérides, nada de nada. Mas eis que chegamos em uma determinada semana e os assuntos são tantos e tão maravilhosos que ficamos paralisados. Como que atônitos frente ao rugido de uma tsunami. Esta foi uma destas semanas. Como explicar e por onde começar? Ao menos cinco grande degustações vieram ao meu encontro e foi uma dura e prazerosa tarefa sobreviver à onda.
Logo na segunda-feira houve uma extremamente bem-vinda mostra de vinhos orgânicos e biodinâmicos. Que dizer deles?
Dos inúmeros produtores presentes, alguns já com representantes no Brasil e outros ainda não, podemos afirmar que produzem vinhos excelentes e de grande personalidade. Alguns muito diferentes. Nenhum mau vinho, porém.
Destaco três produtores e seus vinhos.
Os de Mas Estela, bodega do litoral norte da Catalunha, quase na França, apresentados pelo entusiástico herdeiro/proprietário, Dídac Soto Dalmau. Os legendários e simplesmente inesquecíveis austríacos de Nikolaihof Wachau, baseados na cepa local grüner veltiliner, mas também em riesling e até chardonnay. E finalmente os da Foradori, uma cantina nova, que explora muito bem o potencial da algo menos prestigiada cepa italiana teroldego, criando vinhos pungentes.
Mas o que são e o que almejam estes vinhos orgânicos, biodinâmicos ou seus congêneres? Acredito que o objetivo final seja um compromisso com a terra e com o homem. Em palavras mais prosaicas, com sustentabilidade e saúde. E isto se consegue com o respeito total ao tão falado e pouco entendido "terroir".
Como um assunto leva ao outro, pulo outras degustacões excelentes, de vinhos portugueses e chilenos, para viajar diretamente ao, pode-se dizer, elitista mundo da PFV - Primum Familiae Vini, ou seja, o fechado e aristocrático grupo europeu de onze empresas familiares donas de vinhedos e vinícolas. Seus proprietários se envolvem pessoalmente com a produção e são líderes em suas respectivas regiões. A respeitável lista de membros inclui desde o Château Mouton Rothschild até Antinori e Vega Sicilia, passando pela champagne Pol Roger e o porto de Graham's.
A PFV tem uma lista de princípios que incluem desde um cultivo tradicional, responsável e respeitoso ao terroir, atingindo patamares muito caros aos biodinâmicos (Vega Sicilia, por exemplo, não usa um herbicida há 30 anos, já), até ações de filantropia, sem descuidar do intercâmbio de conhecimentos e experiências em viticultura, enologia e todos os aspectos do negócio.
Chamou a atenção a frase de Miguel Torres sobre um de seus objetivos: "I'll never go to stock market. If you go to stock market, you go to hell". Defende, assim, que a qualidade de alta gama só seja possível, no mercado do vinho, através do negócio familiar. Sem preocupações de rentabilidade a curto prazo. E, para exemplificar, aponta seu colega de Vega Sicilia, que está plantando sobreiros, árvores de onde vem a cortiça da rolha. Elas só começam a produzir num prazo de 40 anos. Muito longo para investidores. Mas no horizonte dos netos dele.
É difícil descrever cada um desses produtos e seria injustiça deixar algum de fora. As palavras se mostram mudas diante de certos vinhos. A literatura se torna inútil. A poesia está imersa inteira no líquido. E explicar a poesia é matá-la um pouco. Cor, aroma, sabor e história se concentram em alguns vinhos excepcionais e mesmo bebedores experientes ficam impressionados.
Cada produtor apresentou duas safras de um mesmo vinho. A saber:
Pol Roger 2000 e 1990.
Beaune Clos de Mouches Blanc 2007 e 2002 (Joseph Drouhin).
Riesling Jubille 2007 e 1998 (Hugels & Fils).
Château de Beaucastel Châteauneuf Du Pape 2007 2004 (Perrin & Fils ).
Solaia 2007 e 2001(Antinori).
Sassicaia 2007 e 2000 (Tenuta de San Guido)
Torres Mas de Plana 2007 e 2001(Torres)
Vega Sicilia Unico 2000 e 1982.
Château Mouton Rothschild 2001 e 1986.
Scharzhofberger Auslese Golkapsel 2007 e 1990 (Egon Muller Scharzhof).
Graham's Vintage Port 2007 e 1980.
Cada um destes vinhos merece uma resenha para si. E pretendo fazê-las aos poucos. Nas semanas de seca! Mas, para deixar um gostinho bom na boca, comentarei o Scharzhofberger Auslese Golkapsel 1990, de quem detém a menor propriedade e produção, nem por isso menos tradicional. A família mora no local e pratica vitivinicultura desde 1797.
Produzido com uvas em "pouriture noble", isto é, botitrizadas, num terroir que remonta o tempo dos romanos, este vinho doce, de um dourado exuberante, tem aromas potentes, riquíssimos e complexos. Daria uma lista de ervas, cítricos, minerais, marmelo, flor de laranja, etc. Na boca é muito denso, elegante e persistente. Mas, acima de tudo, diferente. Muito diferente e surpreendente. Não deve nada ao melhor dos Sauternes. Ouvi de um renomado degustador sentado próximo que morreria afogado neste vinho com prazer. Foi sem dúvida o mais festejado do evento. Infelizmente, está esgotado. Daí o prazer potencializado pela saudade já presente.
Uma degustação deste quilate não acontece todo dia. Foram muitos os elogios e agradecimentos nos pronunciamentos dos convidados eleitos. Mas poderíamos sintetizá-los com a frase de Ciro Lila, proprietário da Mistral e um dos nomes mais importantes do vinho no Brasil: "Obrigado, não por fazerem vinhos excelentes. Mas por fazerem vinhos excelentes tão diferentes".
Fale com Mauricio Tagliari: mauricio.tagliari01@terra.com.br Opiniões expressas aqui são de exclusiva responsabilidade do autor e não necessariamente estão de acordo com os parâmetros editoriais de Terra Magazine.